2016-01-03

ManelAAzevedo

Não há nada de deslocado no tempo, sequer o próprio tempo, quando o que o move é o corpo, nem há nada de deslocado no pensamento, sequer o próprio pensamento, quando o que o move é o mesmo corpo, muito menos há o que quer que seja de desconexo no corpo quando ele se move apesar do tempo e do pensamento.

A culpa é da vontade.


Uma ideia me ocorreu quando o corpo fervia de pulsão para passar ao ecrã pelas teclas o que, provavelmente, reside nas profundezas da alma de quase todos os seres humanos menos dos escritores, que dificilmente são humanos e provavelmente não são seres, talvez sejam entidades diabólicas amaldiçoadas pela inquietação de nomear o que pertence ao domínio do silêncio, e talvez a mais sublime literatura seja aquela que diz tão pouco que o não desaquieta, ao silêncio, pelo menos a literatura que usa um braço para entrar nas cabeças, nos corpos e no intermúndio, ou seja, os corpos e o espaço entre eles.

A ideia ocorreu-me nesta semana de intenso convívio familiar em que estamos bem simplesmente calados ou no conforto de família e amigos, olhando em volta sem grande agitação cerebral: eu gostava de vos dizer, irmãos, primos, filhos, pais, mães, tios, o tanto que quero escrever sobre tantas coisas e pessoas, mas o mais certo é vocês estarem-se marimbando

(na minha mente nortenha estava outra expressão, mas uma cura intensa de "Dowton Abbey" fez-me ver que o tempero quente do nortenho pode ser servido com certa elegância, e que uma coisa é ter orgulho no verbos largos, que são do bem, não do mal, outra é vulgarizá-los, pelo que evitei usar a expressão "estarem-se a cagar" ou o "vão-se foder", que mais à frente também omitirei )

o mais certo é vocês estarem-se marimbando para tudo o que eu queira dizer sobre o que quero escrever. E tenho aquela ideia de que os que me estão mais próximos só me descobrirão morto. Talvez seja por isso que tantos escritores se matam: quando têm produção suficiente para a poder mostrar à família, têm de se matar para serem lidos em profundidade dentro de casa. Para a família, o gajo que escreve é apenas mais um. Se já não é normal ouvirmo-nos, realmente,  em família, e daí o espaço para os amigos e para as redes sociais, menos normal é apreciarmos os ofícios uns dos outros, a não ser quando coincide com o nosso ou nos interessa por qualquer razão operacional. É normal que eles já se estejam todos marimbando para o que eu escrevo. Que fará para o que eu quero escrever.

E foi assim, com este pensamento suicida, que me encontrei no canto mais remoto da sala grande de ano novo, empenhado em não ler e em parar de consultar as redes sociais e disponibilizar-me para alguma actividade colectiva como ver um mau filme na televisão, que é uma saudável tradição. Como o comando da televisão estava em mãos epilépticas e não havia maneira de a proposta televisiva estabilizar, tomei nas mãos uma "shotgun" Nerf  que estava em cima do aparador e experimentei alguns disparos, primeiro com alter-alvos humanos, que não acharam grande piada, depois apontando-a ao céu da boca e à própria têmpora direita. Se aquilo magoa moderadamente à distância, é uma descarga de adrenalina sobre o próprio corpo. E aí surgiu o pensamento. Vocês não querem saber dos meus projectos de escrita e têm a razão toda.

A culpa não é do vento
se a minha voz se calar

Então, num acesso de tédio que é raro, mas saboroso, quando ocorre comigo, tomei outra coisa nas mãos, que também estava pelo aparador, pousada ao acaso: a edição dos espectáculos ao vivo dos "Humanos", um grupo formado em meados da primeira década deste terceiro milénio para celebrar o génio do António Variações. Eu tinha sido comprador do cd de estúdio de 2004 e estive no concerto ao vivo no Coliseu do Porto do dia 4 de Julho de 2005, que foi um de três concertos únicos desta superbanda. Aquilo interessava-me. Interessava-me voltar a ouvir versões que me haviam arrebatado ao vivo e que eu nunca mais voltara a ouvir. Na altura, arranjei apenas dois bilhetes para a plateia, mas, como o meu filho, prestes a fazer apenas 6 anos, era o fã número um da banda, deixei-o ir com a mãe. Mais tarde, consegui um bilhete para os galinheiros, e estive nessa estranha posição de observar, quase na vertical, "os meus", e eles a ter de olhar para o "céu" para ver o pai, prenúncio destas ideias suicidas. Isso também me permitiu ver o concerto à minha maneira, ou seja, de uma forma profundamente intimista. E, embora os cds e os dvds sejam, cada vez mais, retro, encontrei um computador para os ver e ouvir (é um cd áudio e dois dvd - dos concertos nos Coliseus e do concerto no festival do sudoeste, além de um documentário onde descobri algo de notável, que já vos conto).

Claro que o que mais me perturbou e arrebatou foi a senhora que dá título a este post.
A Manela-Azevedo-dos-Clã, como quase toda a gente a trata, foi minha colega no curso de Direito 88-93, na Universidade de Coimbra. Mal me lembro dela, como ela mal se deve lembrar de mim. Sei que era pequenina e discreta, sempre afastada dos olhares primários dos adolescentes tardios que começam um curso universitário. Era, por isso, mais fácil eu não a admirar e anunciar aos amigos, como aliás faço, sempre que posso, que a "Manela-Azevedo 
-dos-Clã" foi minha colega de curso, e aí se esgotaria a "Manela", numa abordagem egocêntrica deste que vos escreve. A "Manela" sou eu, eu é que sou importante.

Acontece que aquela menina discreta dos Gerais da Faculdade de Direito era agora uma mulher brilhante com uma capacidade ímpar, não só de dominar o espaço do palco e a emoção da plateia, mas de se comover com o corpo todo. Não só de dominar o espaço do palco, mas o intermúndio, o espaço entre os corpos. A culpa é da vontade. Que, no caso da Manela, nem com a idade morre. Além de profundamente sensual na reacção à música, quase nos arranca a pele na forma como no-la mostra, como usa a voz toda e a faz sumir e reassomar, como é humilde e, ao mesmo tempo, olímpica e intrépida, insolente e audaciosa. A forma como ela se moveu e interpretou, nessa noite de 4 de Julho de 2005, "A culpa é da vontade", dançando "visceralmente" (não há palavra melhor) no mesmo lugar e afastando e aproximando de si o microfone sem que a base do suporte saísse do lugar, voltando e baixando a cabeça em veneração à música, mas o torso sempre voltado para o público, fez-me perder o ar e pensar que afinal era possível, que a entidade-intérprete era tão ou mais diabólica como ou do que a entidade-escrevente (que, contudo, raramente se exibe fisicamente, embora seja cada vez mais requisitada para tal). O cabelo curto e as linhas gregas da "Manela", a forma como, sendo mãe, move naturalmente e com uma leveza extrema o próprio corpo, faz da experiência de a ver em palco uma experiência religiosa.
Não é quase-religosa. É religiosa mesmo.

A "Manela" é, para mim, a melhor intérprete do Pop-Rock português dos últimos vinte anos. Vê-la deste lugar e ter chegado a este ponto é mais uma lição de vida. É evidente que as coisas são mesmo assim, que nós não iremos hoje a correr para ninguém a quem amanhã, no funeral, pediremos o impossível, ou seja, que não nos morra e que viva mais um dia para que o possamos abraçar ainda quente. A experiência da perda é fundamental, às vezes endógena, à valorização do perdido. Há uma existência vital na morte - como há uma evidência mortal na vida. Mas a culpa aparece quando nos construímos a vísceras, como aquele ou aquela que admiramos e, depois de termos estado tão perto, nos tornamos distantes e pouco acessíveis ou, pior ainda, indiferentes. Fica o lamento pelo que não se conversou, debateu, viveu, bebeu, ouviu. Está bem que os nossos se estejam marimbando para o que fazemos e construimos para nós à margem da vida deles. Já não está bem que nós, os de vísceras, nos percamos constantemente uns dos outros.

E a vida, a estética e até o tempo dão-nos belas lições.
No final do documentário sobre os concertos dos Humanos aparecem imagens do delírio no Coliseu do Porto. A câmara volta-se para o lado direito da plateia, esquerdo de quem olha a partir do palco. No colo de uma bonita rapariga que eu identifico atónito - porque era a minha mulher - está um rapaz de quase seis anitos que eu e ela fizemos na condição de voltarmos ao nada para ele ser tudo. Uma inesperada e intensa viagem no tempo, já nem tanto a nostalgia dos Humanos. Depois de a ManelAAzevedo me ter relembrado a comoção de ver como é genial a "Manela-Azevedo-dos-Clã", ali, em frente à Manela-de-pandeireta-a-bater-ritmadamente-na-anca, o sentido da minha vida. Lembro-me que a Manela interpretou o "Anjo da Guarda", que a minha miúda me disse, no final do concerto, ter de lhe arranjar:

"Tens de me arranjar esta".
Está aqui. Dez anos depois, mais uns trocos.
O rapazito de quase seis anitos, vestido com umas jardineiras vermelhas, é hoje conhecido como o rapaz voador e está do meu tamanho. A minha mulher olha brevemente para os galinheiros. Nunca é tarde para escrever isto, muito menos para exaltar a ManelAAzevedo dos Gerais. Embora o que sempre tenha sentido por todos eles  nunca tenham sido coisas confusas. Nem problemas de expressão.

Sobre ela, sem mais palavras, eis:


PG-M 2015